Medo dos mortos ou dos vivos? Passeio mal-assombrado em SP mescla mistérios com a história do Brasil

SP Haunted Tour

É noite de sábado quando vejo o ônibus estacionado na rua. Reparo que o veículo está parado ao lado da entrada da mais antiga necrópole em funcionamento de São Paulo, o Cemitério da Consolação. Dois ‘fantasmas’ me recebem. Sento na poltrona no meio do ônibus, pronto para começar a experiência intitulada de “SP Haunted Tour”.

SP Haunted Tour

Apesar de ser 21h30 de um sábado, o veículo está lotado. As pessoas aguardam a promessa do city tour: a contação de lendas urbanas e tragédias que envolvem a capital paulista.

Já com o ônibus em movimento, as figuras que deram as boas vindas aos visitantes se apresentam como “Angelo” e “Ethernya”, ao mesmo tempo que contam curiosidades sobre o Cemitério da Consolação. Ali, estão enterradas personalidades como Tarsila do Amaral e Monteiro Lobato, além de abrigar o mausoléu da família Matarazzo, o maior da América Latina.

SP Haunted Tour

Conforme conta “Ethernya”, foi inclusive na rua 17 do cemitério que Oswald de Andrade se casou com a escritora Patrícia Galvão, a Pagu, em 1930, diante do jazigo do pai do escritor.

Durante o trajeto, as pessoas olham atentas ao ‘fantasma’ “Angelo” explicando a diferença de terror horror, que enquanto o primeiro afugenta o segundo paralisa.

“Todos os dias da nossa vida nós morremos de alguma coisa”, reflete o ‘fantasma’ “Angelo”.

O que falo a seguir pode parecer invenção, mas deixo claro que aqui prezo pelo teor jornalístico do texto em questão. Isso porque começo a sentir um cheiro de queimado. Pergunto a duas pessoas sentadas próximas se também sentiram o cheiro forte e incômodo. E respondem que sim, um homem que estava com a família diz “é do atrito dos pneus”. Por coincidência ou não, o passeio continua e o ônibus chega ao Edifício Joelma.

SP Haunted Tour

No local, um incêndio, em fevereiro de 1974, provocou a morte de 187 pessoas e deixou mais de 300 feridos. “Ethernya” conta ainda que no mesmo lugar onde o prédio foi construído, ocorreu o chamado “crime do poço”. Conforme o notório caso de assassinato dos anos 40, um professor da USP matou a mãe e suas duas irmãs e as jogou num poço construído por ele mesmo.

Ao chegar no casarão de Sebastiana de Melo Freire, também conhecida como Dona Yayá, os guias do passeio contam as tragédias enfrentadas pela mulher da família de elite paulistana.

SP Haunted Tour

A partir desse momento, o city tour começa a ganhar um viés mais crítico e denunciativo sobre as condições de prédios importantes da cidade. A anfitriã “Ethernya” destaca para o descaso com a cultura, já que embora a casa de Yayá tenha sido transformada num centro cultural, a falta de verba prejudica a preservação e o funcionamento do espaço.

O mesmo comentário foi feito nas proximidades do Teatro Cultura Artística, que em 2008 sofreu um incêndio de grandes proporções e que até hoje permanece fechado para reconstrução. O enorme painel do pintor Di Cavalcanti foi uma das únicas partes da estrutura que resistiu ao incêndio.

Nas caixas do som do ônibus toca “O Guarani”, de Carlos Gomes. O som anuncia a chegada ao Theatro Municipal. Os guias lembram que o local foi palco de um dos mais importantes eventos das artes no Brasil: a Semana de Arte Moderna, em 1922.

Quando um dos ‘fantasmas’ começa a contar que “Anhangabaú” significa, em tupi, rio ou água do mau espírito, me dou conta que estou no centro da cidade e são mais de dez horas da noite. Muitas das ruas estão completamente vazias. Vez ou outra passam pessoas sem-teto ou então diversos carros da polícia.

O número de assaltos na região também é elevado. Segundo levantamento da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, o número de roubos deste ano na região central da cidade foi o maior já registrado desde 2001.

O ônibus estaciona na Praça da Sé. Ao lado da Catedral Metropolitana, “Ethernya” conta a história de Joaquim Pinto de Oliveira, mais conhecido como Tebas. Negro e ex-escravizado, ele trabalhou em diversos projetos da cidade, como a própria antiga Catedral. Entretanto, nas palavras da anfitriã, o arquiteto acabou sendo historicamente submetido ao esquecimento e suas ações invisibilizadas.

Na Catedral da Sé também estão enterradas diversas figuras consideradas importantes para a história de São Paulo, como todos os arcebispos da Arquidiocese desde 1745. E a guia ainda enfatiza: “não há nenhuma figura negra aqui enterrada”.

Próxima parada, Liberdade. Por mais que o bairro seja conhecido por abrigar a maior comunidade japonesa fora do Japão, o local foi originalmente lar de negros ex-escravizados.

Muita gente não sabe desse fato, mas até a origem do nome do bairro remete ao cenário da escravidão. Numa época em que havia pena de morte no Brasil, o militar negro Francisco José das Chagas, conhecido como “Chaguinhas”, liderou uma revolta e foi condenado à forca. A história conta que, devido a corda ter arrebentado três vezes, as pessoas pediam pela sua “liberdade”.

Não à toa fica também ali localizada a Igreja Santa Cruz das Almas dos Enforcados.

Serviço

Data: todos os sábados, às 19h (ride 1) e 21h30 (ride 2).
Ponto de encontro: Rua Mato Grosso, altura do número 400 (portão do cemitério da Consolação) – Higienópolis – São Paulo – SP.
Valor: R$ 95,00 (venda de ingressos com antecedência).
Para mais informações basta acessar o site.

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